O fim do livro impresso (por CARLOS HEITOR CONY)
Há dentro de cada ser humano um escritor potencial, com gosto de transmitir sua história
VENHO DE alguns dias em Lisboa, onde mal informados de lá me colocaram no júri que avaliou os originais concorrentes ao primeiro Prêmio LeYa - novo grupo editorial que destinou cem mil euros ao vencedor. O regulamento estabelecia que seriam julgadas somente obras inéditas, embora os autores pudessem ter publicados outros textos no mesmo gênero literário. O sigilo foi absoluto, somente após a decisão dos julgadores seria aberto o envelope com o nome do vencedor. Até então, todo o material do concurso correria com um pseudônimo. Um sistema bastante usual, levado a sério, sem tramóias ou pressões, funciona com a isenção desejada para este tipo de avaliação.
O prêmio tinha caráter internacional, abrangia Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau e Timor Leste. E o júri também o era, com representantes de países lusófonos, sob a presidência do escritor Manuel Alegre, poeta, romancista, vice-presidente do Congresso e ex-candidato à presidência da República.
Foi impressionante o número de concorrentes: 422. Numa época em que se discute o funeral do romance e o fim do livro impresso, a vitalidade do gênero, pelo menos em língua portuguesa, continua em alta. Oito originais foram selecionados pela própria editora e submetidos a um júri em que havia apenas um gato pingado que era eu próprio.
Bem, esta seria a notícia em si, mas ela exige um comentário de minha parte. Continua-se escrevendo -ou, como dizem os portugueses, continua-se "a escrever". Por isso ou aquilo, há dentro de cada ser humano um escritor potencial, ou seja, uma pessoa que tem o gosto ou a necessidade de transmitir aos outros a sua visão de mundo ou a sua história. Com o advento da comunicação eletrônica, nunca antes - como diria Lula - tanta gente está escrevendo na telinha dos computadores.
Não posso falar pelos outros, mas o meu caso não foi nem gosto nem a necessidade. Foi o instinto de sobrevivência não na posteridade mas na minha própria atualidade. Fui mudo até os cincos anos e quando comecei a falar, falava tudo errado, trocando letras e pronúncias. Já contei esta história por aí: fui falar que uma vizinha gostava de cozinhar e em vez de "fogão" disse "fodão".
Para evitar vexames, refugiei-me na escrita até que minha mãe me avisou que enquanto eu não aprendesse a dizer "lingüiça", ela jamais faria meu prato então predileto. Eu dizia "lintiça". Para ser devidamente abastecido, passei a escrever bilhetes para ela, fui talvez o primeiro cara do mundo que usou a porta de uma primitiva geladeira para deixar um aviso doméstico. Escrevia lingüiça corretamente, sem o trema que está para ser abolido pelo novo acordo ortográfico. Eu não sabia que estava à frente do meu tempo, embora atrasado no tempo dos outros.
Voltando ao Prêmio LeYa: o anúncio oficial foi feito na Feira de Frankfurt, semana passada. Na mesma feira onde editores de todo o mundo perceberam o ocaso do livro impresso, guttemberguiano, substituído pelos livros eletrônicos que começam a tomar conta do mercado cultural.
Homem terminal, escritor terminal, não estou muito preocupado com isso. Faço parte de uma cultura também terminal. Mesmo assim, se fosse avisado a tempo, talvez tivesse mandado o 423º original para Lisboa. Alegando minha suspeição, me dispensaria de atravessar o Atlântico, ida e volta, para avaliar os originais dos outros.
CARLOS HEITOR CONY: Cony é colunista do Jornal Folha de São Paulo.
Originalmente publicado em www.verdestrigos.com.br
VENHO DE alguns dias em Lisboa, onde mal informados de lá me colocaram no júri que avaliou os originais concorrentes ao primeiro Prêmio LeYa - novo grupo editorial que destinou cem mil euros ao vencedor. O regulamento estabelecia que seriam julgadas somente obras inéditas, embora os autores pudessem ter publicados outros textos no mesmo gênero literário. O sigilo foi absoluto, somente após a decisão dos julgadores seria aberto o envelope com o nome do vencedor. Até então, todo o material do concurso correria com um pseudônimo. Um sistema bastante usual, levado a sério, sem tramóias ou pressões, funciona com a isenção desejada para este tipo de avaliação.
O prêmio tinha caráter internacional, abrangia Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau e Timor Leste. E o júri também o era, com representantes de países lusófonos, sob a presidência do escritor Manuel Alegre, poeta, romancista, vice-presidente do Congresso e ex-candidato à presidência da República.
Foi impressionante o número de concorrentes: 422. Numa época em que se discute o funeral do romance e o fim do livro impresso, a vitalidade do gênero, pelo menos em língua portuguesa, continua em alta. Oito originais foram selecionados pela própria editora e submetidos a um júri em que havia apenas um gato pingado que era eu próprio.
Bem, esta seria a notícia em si, mas ela exige um comentário de minha parte. Continua-se escrevendo -ou, como dizem os portugueses, continua-se "a escrever". Por isso ou aquilo, há dentro de cada ser humano um escritor potencial, ou seja, uma pessoa que tem o gosto ou a necessidade de transmitir aos outros a sua visão de mundo ou a sua história. Com o advento da comunicação eletrônica, nunca antes - como diria Lula - tanta gente está escrevendo na telinha dos computadores.
Não posso falar pelos outros, mas o meu caso não foi nem gosto nem a necessidade. Foi o instinto de sobrevivência não na posteridade mas na minha própria atualidade. Fui mudo até os cincos anos e quando comecei a falar, falava tudo errado, trocando letras e pronúncias. Já contei esta história por aí: fui falar que uma vizinha gostava de cozinhar e em vez de "fogão" disse "fodão".
Para evitar vexames, refugiei-me na escrita até que minha mãe me avisou que enquanto eu não aprendesse a dizer "lingüiça", ela jamais faria meu prato então predileto. Eu dizia "lintiça". Para ser devidamente abastecido, passei a escrever bilhetes para ela, fui talvez o primeiro cara do mundo que usou a porta de uma primitiva geladeira para deixar um aviso doméstico. Escrevia lingüiça corretamente, sem o trema que está para ser abolido pelo novo acordo ortográfico. Eu não sabia que estava à frente do meu tempo, embora atrasado no tempo dos outros.
Voltando ao Prêmio LeYa: o anúncio oficial foi feito na Feira de Frankfurt, semana passada. Na mesma feira onde editores de todo o mundo perceberam o ocaso do livro impresso, guttemberguiano, substituído pelos livros eletrônicos que começam a tomar conta do mercado cultural.
Homem terminal, escritor terminal, não estou muito preocupado com isso. Faço parte de uma cultura também terminal. Mesmo assim, se fosse avisado a tempo, talvez tivesse mandado o 423º original para Lisboa. Alegando minha suspeição, me dispensaria de atravessar o Atlântico, ida e volta, para avaliar os originais dos outros.
CARLOS HEITOR CONY: Cony é colunista do Jornal Folha de São Paulo.
Originalmente publicado em www.verdestrigos.com.br
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